“Queriam calar Igreja e estudantes”, afirma assessor em evento no Recife
O
assessor da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) padre José
Ernanne Pinheiro declarou no dia 17 de agosto, em sessão pública da
Comissão Estadual da Memória e Verdade Dom Helder Câmara, no auditório
da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-PE), que o assassinato do padre
Henrique, em maio de 1969, foi uma tentativa da repressão de calar os
dois segmentos mais atuantes da sociedade pernambucana naquele momento: a
Igreja Católica e o movimento estudantil. Na época, o padre Ernanne era
o vigário-geral da Arquidiocese de Olinda e Recife e acompanhou todos
os ataques e a pressão sofrida por dom Helder e seus principais
assessores e amigos.
A morte do padre Henrique era um ataque
indireto a dom Helder. Além disso, Henrique cuidava da Pastoral da
Juventude e tinha muita influência entre os estudantes, o que também
incomodava. Não tenho nomes para acusar por esse fato, mas está claro
que se tratou de um crime político”, avaliou padre Ernanne. Para o
religioso, a Comissão da Verdade cumpre uma tarefa primordial dentro do
processo de registro histórico brasileiro. “As próximas gerações
precisam conhecer seus heróis. Esperamos que essa comissão, a nacional e
as demais que estão surgindo nos outros Estados contribuam para isso”,
frisou.
Em seu depoimento, padre Ernanne
esclareceu que dentro da própria Igreja Católica existiam correntes
adversas e que bispos e padres colaboraram com a repressão. “Em
Pernambuco, sob o comando de dom Helder nos posicionamos ao lado da
democracia e dos excluídos”, completou.
Para o advogado Pedro Eurico, relator do
caso Padre Henrique na comissão, o depoimento reforçou o entendimento
de que vários setores da sociedade pernambucana sujaram as mãos de
sangue durante a ditadura. “Não era apenas a Polícia e as Forças Armadas
que estavam na vanguarda desse movimento. Muitos civis se engajaram na
repressão e se beneficiaram disso posteriormente”, concluiu.
O presidente da comissão, Fernando
Coelho, afirmou que o depoimento trouxe elementos importantes para a
investigação. “Ficamos honrados com a presença do padre Ernanne, pela
clareza de suas ideias e pela contextualização do momento histórico que
eles nos trouxe”.
A
comissão resolveu adiar, do dia 23 para dia 30 deste mês, o depoimento
do ex-major da PM de Pernambuco José Ferreira dos Anjos. Os integrantes
da comissão querem mais tempo para se preparar para ouvir o ex-militar,
considerado uma das fontes mais ricas sobre o período da ditadura no
Estado. Ferreira foi recrutado dentro da PM pelo 4º Exército e atuou
diretamente na repressão aos opositores do golpe militar de 1964. Sobre a
importância das informações guardadas pelo ex-major, o advogado
Humberto Vieira de Melo, membro da comissão, foi enfático. “Basta que
ele repita o que nos disse na sessão reservada”, ressaltou.
Leia na íntegra o depoimento do padre
José Ernanne, sobre o trucidamento do padre Antonio Henrique Pereira
Neto, na Comissão da Verdade e da Memória Dom Helder Camara, em
Pernambuco.
Exmo. Sr Dr. Fernando Coelho, presidente da Comissão,
Exmo. Sr. Dr. Pedro Eurico, relator do caso Padre Henrique na Comissão,
Demais membros da Comissão da Verdade e da Memória,
Meus Senhores e minhas Senhoras,
Exmo. Sr. Dr. Pedro Eurico, relator do caso Padre Henrique na Comissão,
Demais membros da Comissão da Verdade e da Memória,
Meus Senhores e minhas Senhoras,
Meu depoimento perante esta
significativa Comissão é eclesial. No período, eu exercia o cargo de
Vigário Episcopal dos Leigos na Arquidiocese de Olinda Recife e como tal
fui nomeado pelo arcebispo Dom Helder Camara, na missa de corpo
presente, o sucessor do padre Henrique para dar continuidade aos
trabalhos da Pastoral de juventude. Vou tentar organizar minha reflexão
em cinco partes:
1. Quem era o Padre Henrique e como realizava o trabalho pastoral;
2. O contexto da Igreja em Olinda e Recife no período;
3. O bárbaro trucidamento do padre Antônio Henrique;
4. A morte do padre Antonio Henrique e a Igreja de Olinda e Recife;
5. As repercussões do trucidamento do padre e perguntas consequentes.
2. O contexto da Igreja em Olinda e Recife no período;
3. O bárbaro trucidamento do padre Antônio Henrique;
4. A morte do padre Antonio Henrique e a Igreja de Olinda e Recife;
5. As repercussões do trucidamento do padre e perguntas consequentes.
1. Quem era Padre Antônio Henrique Pereira Neto e seu trabalho pastoral
Nasceu no Recife aos 28 de outubro de
1940. Fez sua formação sacerdotal em Olinda, João Pessoa, com estudos de
psicologia nos Estados Unidos. Foi ordenado sacerdote aos 25/12/1965,
poucos dias após o término do Concílio Vaticano II.
Desde os tempos de Seminário,
manifestava uma vocação para trabalhar com a juventude. Vários grupos de
secundaristas e universitários recebiam sua orientação. Henrique
defendia uma proposta metodológica baseada no seguinte princípio: o
final do curso médio e o início do curso universitário é um momento
propício para ajudar os jovens a se encaminhar para a vida.
Padre Henrique já tinha a experiência da
Juventude Estudantil Católica (JEC); mas para melhor se preparar para
sua missão, participava de encontros de pastoral de juventude a nível
regional, nacional e latino-americano. Para fundamentar cada vez mais
seus pressupostos apostólicos, dedicava bastante tempo aos estudos,
sobretudo das Sagradas Escrituras e da Liturgia. Como responsável da
Pastoral da Juventude da Arquidiocese reservava suas tardes para atender
os jovens que o procuravam para conversar e discutir temas de interesse
juvenil no próprio prédio do secretário arquidiocesano – o Juvenato Dom
Vital. Também atendia no Colégio Marista do Centro, em parceria com os
irmãos maristas no trabalho de formação dos jovens.
Solicitei ajuda para o meu depoimento a
membros dos grupos acompanhados pelo padre Henrique, perguntando: como
funcionava a metodologia do grupo e qual o papel do Padre Henrique no
relacionamento com os jovens. Recebi um depoimento esclarecedor, através
de Lavínia Lins, após trocar ideias com outros/as colegas:
“...Éramos naquela época, amigos e
conhecidos, (alguns filhos de pais que eram amigos), que se encontravam
para conversar, “paquerar”, formar banda de música (“conjunto”, na
época), organizar quadrilhas no São João. Henrique (assim gostava de ser
chamado) havia aparecido por ali porque “um dos jovens estava tendo
problemas com os pais” e ele intermediava diálogos entre eles. Os
meninos então começaram a se encontrar com ele (Henrique) com
regularidade. As meninas souberam e se interessaram.
Passamos a nos reunir às 3ª feiras à
noite, para conversas (a “reunião”) e domingos à tarde para a missa e
debates. Às vezes os pais iam à reunião e um diálogo entre gerações era
mediado por ele. Com cada um de nós Henrique estabelecia uma relação
pessoal, de intimidade e conhecimento. Chegou a aplicar alguns testes
psicológicos (como o desenho de árvore e da família) buscando
aproximar-se, saber mais sobre cada um de nós.
Sua postura era de aceitação (tão
importante nesta idade) e sua linguagem era a nossa. Era jovem também.
Favorecia as relações e a exposição sadia de cada um no grupo. Nossas
vozes eram ouvidas e repercutiam. Sentíamos pertencendo a algo que nós
mesmos criávamos. Era com este sentimento que estávamos sendo
direcionados, de forma muito inteligente, a não nos envolver com álcool e
drogas e a repensar temas que nos cercavam, como: as relações
interpessoais, com outras gerações, temas sociais como a prostituição,
etc.
Ao mesmo tempo nos oferecia a Igreja
Católica, não apenas na vivência dos encontros, mas através de uma missa
descontraída, onde se tocava violão e cantava. Cada etapa era
explicada. A missa agora era “prazerosa”. Um clima de informalidade e
participação, incluindo as nossas realidades na própria celebração. Tudo
era muito real e próximo, assim como as relações que se estabeleciam
com amizades que duram até hoje, apesar da distância, namoros que
evoluíram para casamentos que se mantêm. Henrique nos mostrava uma
forma nova de nos relacionar conosco mesmos, com o outro, com o mundo”.
2. O contexto da Igreja em Olinda e Recife no período
Padre Henrique assimilou com carinho as
perspectivas da Igreja do Concílio Vaticano II, em clima de diálogo com o
mundo, em clima de ecumenismo. Era um jovem que vivia a primavera da
Igreja em renovação. E a nomeação inesperada de Dom Hélder Camara para o
Recife, exatamente nesse período, lhe era providencial e tornou-se para
o nosso jovem padre um modelo a imitar e uma corresponsabilidade a
exercer.
Dois fatores significativos acentuavam a importância primordial da presença de Dom Helder no Nordeste do Brasil no momento:
- O recente golpe militar de 31 de março de 1964;
- O Concílio Vaticano II em pujante evolução na perspectiva de renovar a Igreja e melhor servir no mundo atual (duas sessões tinham acontecido).
- O Concílio Vaticano II em pujante evolução na perspectiva de renovar a Igreja e melhor servir no mundo atual (duas sessões tinham acontecido).
Diante do regime militar, eram já
conhecidas suas posições, tanto pela atuação na cidade do Rio de Janeiro
como em nível nacional - em defesa dos direitos dos pobres, da
democracia e da liberdade de expressão.
Durante o Concílio Vaticano II,
exercendo, no período, a missão de Secretário Geral da Conferência
Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) lhe foi oferecida a possibilidade
de ser, em breve, missionário do mundo, como peregrino da justiça e da
paz, o que, de fato, aconteceu e o exerceu com maestria.
Construiu imediatamente um
relacionamento especial de amizade durante o Concílio com os Bispos que
tinham maior sensibilidade para a problemática do então chamado
“Terceiro Mundo”. Neste contexto, surge o famoso grupo de Bispos,
provenientes de todos os Continentes, que se encontrava para refletir
sobre a missão da Igreja junto aos pobres e a necessidade da Igreja ser
sinal do Cristo pobre.
Estes fatores históricos tornavam Dom
Hélder um homem de características excepcionais para assumir o pastoreio
numa região sofrida como o Nordeste, numa cidade cheia de contrastes
sociais como o Recife, num momento político específico.
Dom Helder assumia o seu pastoreio a 12
dias do golpe militar de 1964. A cidade do Recife era palco de
numerosas prisões, exílios, por motivos políticos. O medo invadia a
população. Havia um clima de sobressalto. A cada momento poderia haver
novas prisões, novos pichamentos...
Dom Hélder, logo na mensagem de chegada,
abre o coração aos seus diocesanos, procurando desarmar os espíritos.
Fez uma saudação ao povo, ao seu povo, logo ao chegar ao Recife,
permeada de liberdade evangélica, embebida de sabor profético – anúncio e
denúncia, de teor missionário. Apresenta-se como o bispo de todos ao
explicitar sua postura pessoal e suas prioridades: ”Ninguém se
escandalize quando me vir frequentando criaturas tidas como indignas e
pecadoras. Quem não é pecador? Quem pode jogar a primeira pedra? Nosso
Senhor, acusado de andar com publicanos e almoçar com pecadores,
respondeu que justamente os doentes é que precisam de médico. Ninguém se
espante me vendo com criaturas tidas como envolventes e perigosas, da
esquerda ou da direita, da situação ou da oposição, antirreformistas ou
reformistas, antirrevolucionárias ou revolucionárias, tidas como de boa
ou de má fé. Ninguém pretenda prender-me a um grupo, ligar-me a um
partido, tendo como amigos os seus amigos e querendo que eu adote as
suas inimizades. Minha porta e meu coração estarão abertos a todos,
absolutamente a todos. Cristo morreu por todos os homens: a ninguém devo
excluir do diálogo fraterno”.
3. O bárbaro trucidamento do Padre Antonio Henrique
Padre Antônio Henrique foi formado na
escola do seu Pastor Dom Helder. Também era fruto tanto da renovação da
Igreja em pleno Concílio Vaticano II como fruto do compromisso com o
mundo estudantil, ainda em ebulição, contra a ditadura militar. Henrique
tinha consciência de que corria risco. Estava comprometido com as
causas dos estudantes universitários, ainda muito politizados, e fazia
seu trabalho pastoral em sintonia com a dimensão profética da
Arquidiocese com contínuas denúncias contra as arbitrariedades da
ditadura milita; isto o levava a viver em vigilância.
Seu bárbaro trucidamento aconteceu no
dia 27 de maio de 1969. Na tarde do dia 26 de maio ainda recebeu vários
jovens no Juvenato. Por volta das 19 horas saiu para uma reunião no
bairro de Parnamirim, onde permaneceu com os jovens acompanhados dos
seus pais, até às 22,30 horas. Conforme depoimento do grupo de Lavínia
Lins já citado, após a última reunião quando o Padre Henrique entrou num
carro desconhecido:
“Nosso último encontro se deu para que
os pais e os filhos pudessem discutir tendo Henrique como
intermediador. O clima era agradável e seguro. Saí com meus pais e no
Largo do Parnamirim, avistei Henrique pela última vez. Passamos de carro
e tentei acenar para ele. Sem nos ver, entrava numa “rural” verde e
branca, me parece. Dois homens estavam fora do carro, de porta aberta,
junto com ele. Outro dirigia. Depois foi apenas a notícia”.
Na manhã seguinte, as autoridades
eclesiásticas foram advertidas de que havia um corpo num capinzal ao
lado da Universidade, reconhecido como o corpo do padre Henrique. Fora
transportado para o necrotério público onde Dom Helder logo acorreu.
Outros padres, inclusive Dom Basílio Penido, o abade do mosteiro de São
Bento, médico, também se aproximaram e aí permaneceram até a conclusão
da necropsia. O sacerdote tinha sido amarrado, arrastado, recebeu três
tiros na cabeça e algumas torturas; todos os golpes atingiram
exclusivamente a cabeça e o pescoço, conforme atesta o próprio Dom
Basílio Penido.
O corpo foi velado na matriz do
Espinheiro, onde aconteceram duas celebrações – uma às 21 horas do mesmo
dia e outra na manhã seguinte antes de partir para o cemitério. Nesse
contexto, foi divulgada uma nota do Governo Colegiado da Arquidiocese,
expressando a dor da arquidiocese, o sofrimento dos jovens em plena
comoção, dos familiares perplexos.
Como a Igreja local não dispunha de
meios de comunicação viáveis para divulgar o acontecimento e a imprensa
local estava sob censura, o texto da Nota, após pronunciada, foi
mimeografado e distribuída pelas paróquias, pelos colégios e
universidades, fato que fez acorrer uma grande quantidade de pessoas
para a celebração e, logo depois, para o enterro. A Nota foi redigida e
discutida com a participação de 40 padres, vários deles membros do
Conselho Presbiteral.
A Nota do Governo Colegiado da Arquidiocese de Olinda e Recife :
1. Cumprimos o pesaroso dever de
comunicar o bárbaro trucidamento do padre Antônio Henrique Pereira Neto,
cometido na noite anterior, 26 de maio, nesta cidade do Recife;
2. Aos 29 anos de idade e 3 anos de sacerdote, o padre Henrique dedicou a vida ao apostolado da juventude, trabalhando sobretudo com os universitários. Até às 22,30 horas de ontem, segundo o testemunho de um grupo de casais, esteve reunido, em Parnamirim, com pais e filhos, na tentativa que lhe era tão cara, de aproximar gerações;
3. O que há de particularmente grave no presente crime, além dos requintes de perversidade de que se reveste (a vítima foi amarrada, golpeada no pescoço e recebeu três tiros na cabeça) é a certeza prática de que o atentado brutal se prende a uma série pré-estabelecida e objeto de ameaças e avisos;
4. Houve, primeiro, ameaças escritas em Edifícios, acompanhadas por vezes, de disparos de armas de fogo. O Palácio de Manguinho recebeu numerosas inscrições. A Sede do Secretariado Arquidiocesano e Regional nordeste II foi alvejado. A residência do Arcebispo, na igreja das Fronteiras, alvejada e pichada.
5. Vieram, depois, ameaças telefônicas, com o anúncio de que já estavam escolhidas as próximas vítimas. A primeira foi o estudante Cândido Pinto de Melo, quartanista de engenharia, presidente da União dos Estudantes de Pernambuco. Acha-se inutilizado, com a medula seccionada. A segunda foi um jovem sacerdote, cujo crime exclusivo consistiu em exercer apostolado entre os estudantes.
6. Como cristãos, e a exemplo de Cristo e do proto-mártir Santo Estevam, pedimos a Deus perdão para os assassinos, repetindo a palavra do mestre: “Eles não sabem o que fazem”.
Mas julgamo-nos no direito e no dever de erguer um clamor para que ao menos, não prossiga o trabalho sinistro deste novo esquadrão da morte.
7. Que o holocausto do padre Antônio Henrique obtenha de Deus a graça da continuação do trabalho pelo qual doou a vida e a conversão dos seus algozes.
2. Aos 29 anos de idade e 3 anos de sacerdote, o padre Henrique dedicou a vida ao apostolado da juventude, trabalhando sobretudo com os universitários. Até às 22,30 horas de ontem, segundo o testemunho de um grupo de casais, esteve reunido, em Parnamirim, com pais e filhos, na tentativa que lhe era tão cara, de aproximar gerações;
3. O que há de particularmente grave no presente crime, além dos requintes de perversidade de que se reveste (a vítima foi amarrada, golpeada no pescoço e recebeu três tiros na cabeça) é a certeza prática de que o atentado brutal se prende a uma série pré-estabelecida e objeto de ameaças e avisos;
4. Houve, primeiro, ameaças escritas em Edifícios, acompanhadas por vezes, de disparos de armas de fogo. O Palácio de Manguinho recebeu numerosas inscrições. A Sede do Secretariado Arquidiocesano e Regional nordeste II foi alvejado. A residência do Arcebispo, na igreja das Fronteiras, alvejada e pichada.
5. Vieram, depois, ameaças telefônicas, com o anúncio de que já estavam escolhidas as próximas vítimas. A primeira foi o estudante Cândido Pinto de Melo, quartanista de engenharia, presidente da União dos Estudantes de Pernambuco. Acha-se inutilizado, com a medula seccionada. A segunda foi um jovem sacerdote, cujo crime exclusivo consistiu em exercer apostolado entre os estudantes.
6. Como cristãos, e a exemplo de Cristo e do proto-mártir Santo Estevam, pedimos a Deus perdão para os assassinos, repetindo a palavra do mestre: “Eles não sabem o que fazem”.
Mas julgamo-nos no direito e no dever de erguer um clamor para que ao menos, não prossiga o trabalho sinistro deste novo esquadrão da morte.
7. Que o holocausto do padre Antônio Henrique obtenha de Deus a graça da continuação do trabalho pelo qual doou a vida e a conversão dos seus algozes.
Recife, 27 de maio de 1969.
+Dom Helder, arcebispo de Olinda e Recife,
+Dom José Lamartine, Bispo Auxiliar e Vigário Geral,
Monsenhor Isnaldo Fonseca, Vigário Episcopal,
Monsenhor Arnaldo Cabral, Vigário Episcopal,
Mons Ernanne Pinheiro, Vigário Episcopal
+Dom José Lamartine, Bispo Auxiliar e Vigário Geral,
Monsenhor Isnaldo Fonseca, Vigário Episcopal,
Monsenhor Arnaldo Cabral, Vigário Episcopal,
Mons Ernanne Pinheiro, Vigário Episcopal
O percurso da Igreja do Espinheiro em
direção ao cemitério, sobretudo na Avenida Caxangá, parecia um campo de
guerra. O cortejo fúnebre foi crescendo em população durante a
caminhada; contou com a presença de mais ou menos 8 mil pessoas. Também
aconteceram alguns incidentes desagradáveis. Invasão do cortejo por
policiais para prender personalidades como o deputado federal cassado
Oswaldo Lima Filho presente ao enterro e a invasão do cortejo para
mandar tirar as faixas conduzidas pelas lideranças estudantis: ”Os
militares mataram Padre Henrique”.
O enterro aconteceu no cemitério da
Várzea, a pedido da família. Lá chegando, o recinto estava totalmente
cercado por forças militares, o que impedia qualquer manifestação. Era
plano dos estudantes expressarem sua indignação juvenil diante do que
eles estavam presenciando, o que Dom Helder tinha evitado que
acontecesse no interior da Igreja do Espinheiro.
Dom Helder acompanhou com muita unção
todo o cortejo e foi perspicaz em perceber o quadro à chegada do
cemitério. Procurando evitar possíveis confrontos, subiu numa cadeira,
acenou para a população com um lenço branco em sinal de paz, rezou um
Pai Nosso com a população, deu uma benção e solicitou que todos se
retirassem em silêncio. Um silêncio piedoso, mas extremamente gritante.
4. A morte do padre Antonio Henrique e a Igreja de Olinda e Recife
A missa de 7º. dia foi o momento forte para a assimilação do trágico ocorrido.
A Arquidiocese, tentando evitar fatos
indesejáveis, preferiu descentralizar a celebração; preparou um texto
litúrgico unificado para orientação de todas as paróquias e centros
religiosos. Foi a ocasião para oferecer os critérios cristãos para
avaliar o trágico acontecimento. Sua introdução dizia o seguinte: “Meus
irmãos, há sete dias precisamente Antônio Henrique, presbítero da Igreja
de Deus no Recife, foi trucidado por causa do Evangelho de Jesus
Cristo. Reunidos, hoje aqui, não são pensamentos de ódio ou de vingança,
não é a sede de mais sangue que nos movem e nos irmanam. São
pensamentos de paz. Paz que brota da fé. Fé que fala mais alto do que a
perversidade dos maus. Fé, que nos diz que padre Antonio Henrique está
com Jesus, no Reino dos vivos. Fé que nos faz apreciar a importância do
seu holocausto e ouvir os apelos de Deus a continuarmos o trabalho que
padre Henrique começou. Imploremos a misericórdia de Deus sobre todos
nós, que vivemos esta hora triste e angustiante; sobre a família do
padre Henrique; sobre o mundo que mata aqueles que lhe anunciam a
verdadeira paz; sobre os assassinos do padre Antonio Henrique”.
Na missa de 30º. dia, a homilia de Dom
Helder amplia a reflexão numa leitura religiosa do trágico acontecimento
em sua relação com o momento político. Começou a Homilia com uma
pergunta: “O que diria o nosso Padre Henrique se Deus lhe permitisse que
ele mesmo pregasse a homilia desta Missa? Que ponderações teria a
fazer, que sugestões a apresentar, falando-nos de junto de Deus, onde
nossa fé espera que ele se ache? Salvo engano, começaria repetindo a
palavra de Nosso Senhor, em sua paixão:”Não choreis sobre mim, mas sobre
vós e vossos filhos” (Lc 23,28)”.
E apresenta “Apelo que chega da eternidade”:
- da eternidade, de junto de Deus, ele
apela para todos os que acusam a Igreja no Nordeste, de subversão e
comunismo. Comparem o que estamos pregando em nossa região com o Ensino
Social da Igreja, ainda recentemente expresso por Paulo VI em Genebra:
estamos rigorosamente dentro da “Populorum Progressio” e das conclusos
de Medellin;
- da eternidade, de junto de Deus, ele
pede aos Governantes que, sem perda de tempo, partam para a reforma de
base e, de modo particular, para a reforma agrária. Mas adverte que será
impossível qualquer mudança autêntica de estrutura através de reforma
conduzida de cima para baixo. Ou o Povo participa como agente de
mudança, ou não haverá promoção humana e social;
- da eternidade, de junto de Deus, ele
pede aos Responsáveis pela ordem pública que, quanto antes, terminem as
medidas de exceção que estão tornando impossível o uso de processos
democráticos da parte dos cidadãos em geral, e especialmente dos
estudantes, e dos trabalhadores. A situação presente cria clima propício
a arbitrariedades, e abusos, a crimes (e não seria difícil apontar
casos, de que são tristes exemplos os esquadrões da morte). A situação
presente impele os mais impacientes para a clandestinidade, a
radicalização e a violência.
Estas afirmações do nosso Arcebispo Dom
Helder Camara levam-nos a considerar que a morte do padre Henrique, por
motivações sócio-políticas, mas com convicções cristãs sólidas, não era
uma exceção na América Latina. Estávamos rodeados de densa nuvem de
testemunhos de fé (cf. carta aos Hebreus 12,1).
Nos anos das ditaduras na América Latina
foram publicadas muitas reflexões sobre o conceito de martírio,
valorizando os que tombaram numa luta pela democracia, em busca da
justiça, motivados pela fé, sabendo que poderiam pagar com a vida sua
doação.
O padre jesuita Karl Rahner, considerado
o grande teólogo do século XX, fala sobre a necessidade de ampliação do
conceito clássico de martírio. Propõe que o termo martírio seja
aplicado tanto para a morte suportada pela fé como pela morte que tem
sua origem num compromisso e numa luta ativa, assumidos pela mesma fé.
5. As repercussões do trucidamento do padre e perguntas consequentes
A Igreja local de Olinda e Recife não
ficou isolada nesse sofrido momento. Recebeu solidariedades diversas e
significativas do Brasil e do exterior. Confortadora para todos, mas
sobretudo para Dom Helder, foi a visita imediata do Secretário Geral da
CNBB, Dom Aloísio Lorscheider.
Chegaram Mensagens do Santo Padre Paulo
VI, do Secretário de Estado do Vaticano, da Presidência do CELAM
(Conselho Episcopal Latino-americano), da Nunciatura Apostólica e tantas
outras.
O Governador do Estado da época, Sr.
Nilo Coelho, nomeou uma Comissão de Inquérito e entregou sua presidência
ao Magistrado, juiz da 11ª. Vara, o Dr. Aloísio Xavier e para
desempenhar as funções de Procurador nomeou o Dr. Rorinildo da Rocha
Leão.
Logo no dia 11 de junho de 1969, o Dr.
Aloísio Xavier, segundo publicou o jornal Diário de Pernambuco, deu um
excelente testemunho em favor da conduta do sacerdote, afirmando com
palavras claras e incisivas que valeu como uma resposta a todas as
insinuações veiculadas por órgãos da imprensa.
Convidado a depor sobre o assassinato do
Padre Antônio Henrique, na Comissão Judiciária, em abril de 1975, Dom
Helder solicitou a anexação aos autos do processo sua declaração.
Ele relembra em detalhes os
acontecimentos de maio de 1969, a nota do Governo Colegiado da
Arquidiocese, o caminhar da Comissão Judiciária, as fases do processo e
repete perguntas publicadas em Nota, no dia 29 de Agosto de 1969,
fazendo sérias considerações (importante de serem explicitadas mesmo se
algumas já atendidas).
Fala Dom Helder na sua declaração: “Como
esquecer a coincidência de, poucas horas antes do que ocorreu a Cândido
Melo, ter sido alvejado o Juvenato Dom Vital (local em que trabalhava o
padre Antonio Henrique), havendo os assaltantes – segundo depoimento de
duas testemunhas citadas no Relatório da Comissão Judiciária - (parte
final do item V), disparado suas armas, aos gritos de CCC? Como esquecer
que, segundo o mesmo Relatório, no mesmo item, foi o CCC quem ameaçou o
Padre Henrique pelo telefone?”
A nota continuava perguntando: “Porque
não se faz uma devassa em regra sobre este famigerado CCC? Como e quando
foi organizado? Quem o financia e quem o dirige? Quem são os seus
sócios? Onde tem sua sede? Quais os objetivos e quais os feitos desta
versão do Ku-Klux-Kan? Houve interesse efetivo em apurar a passagem do
CCC pela Universidade Rural? E pela Universidade Católica? E pelos
Diretórios Acadêmicos da Escola de Engenharia e da antiga Faculdade de
Filosofia, ambas da Universidade Federal de Pernambuco? E pela
residência do Arcebispo, duas vezes alvejada e objeto de inscrições com
ameaças? E pelo Palácio de Manguinho? Quais os resultados do Inquérito
sobre o alvejamento do Juvenato Dom Vital onde funcionam a Cúria
Arquidiocesana e os Secretariados Arquidiocesanos e do Regional da
CNBB?”
Por que voltar ao caso neste momento?
A indignação ética dos brasileiros/as e,
em especial, dos pernambucanos/as, exige que fato como esse agora
relatado seja conhecido, refletido e avaliado para que nunca mais volte a
acontecer no nosso país – Nunca Mais.
Ao mesmo tempo, é sumamente importante
as novas gerações conhecerem seus verdadeiros heróis – os que deram a
vida na busca de mais vida.
E numa leitura cristã, repetimos o que diziam os primeiros cristãos: “O sangue dos mártires é semente de novos Cristãos”.
Está de parabéns a Comissão da Verdade e da Memória de Pernambuco!
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