terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

AULA INAUGURAL NO SEMINÁRIO SÃO JOÃO MARIA VIANEY A PARÁBOLA DO SAMARITANO MISERICORDIOSO


A parábola do samaritano misericordioso começa da seguinte maneira: “Um homem descia de Jerusalém a Jerico e caiu no meio dos assaltantes que, após havê-lo despojado e espancado, foram-se, deixando-o semimorto”. Logo depois o texto continua “Certo samaritano em viagem, porém, chegou junto dele”.

Nesta parábola há dois personagens principais: um homem e certo samaritano. Temos um homem caído, ferido e um samaritano que se comove com aquela situação. Sabemos que há outros personagens na história: um levita e um sacerdote, mas, com estes não há proximidade. Eles passam ao largo. Além destes há outras pessoas envolvidas, são os assaltantes, estes se aproximaram para despojar e espancar. Para Santo Ambrósio estes assaltantes são “os anjos das trevas e da noite quês e transformam as vezes em anjos de luz”. Paulo afirma que não devemos compactuar com as obras das trevas. Santo Ambrósio continua: “estes anjos nos despojam da veste nupcial que recebemos”. Quem rouba a dignidade do outro, quem vence derrubando o outro não passa de um ladrão, de um anjo das trevas, mesmo que esteja “transfigurado em anjo de luz” (2Cor 11, 14). 

Com um homem caído e um samaritano, Lucas pinta um quadro onde a moldura é a miséria do homem caído e o centro é a compaixão do samaritano. Lucas pinta o quadro da caridade. Mas não bastam os dois personagens para acontecer à caridade, o samaritano poderia ter sido indiferente ao homem caído. 

Há algo que faz com que a caridade aconteça, o encontro possibilita, mas não significa que a caridade acontece. O levita e o sacerdote tiveram a oportunidade de viver a compaixão, também estiveram na mesma linha de cruzamento e viram o homem caído, mas passaram ao longe, estavam apressados demais. Na realidade viram, mas não viram. O olhar que é a apreensão da realidade pelos sentidos é fundamental para o homem, mas não é decisivo no momento de agir em favor do outro. Não basta olhar, ver, para que as pessoas se encontrem, é preciso ver com o coração, um olhar purificado, um olhar interiorizado. 

O levita, o sacerdote e o samaritano viram aquele homem, mas somente o samaritano “chegou junto dele”. Ele não ficou “de longe”, ele chegou junto do que estava caído. Os outros apenas viram já o samaritano “moveu-se de compaixão”. A compaixão faz o samaritano ser próximo do outro. O caído estava vivendo uma paixão, uma dor. O samaritano sente com-paixão, isto é ele compartilha da dor do outro, ele a faz sua, não no sentido de uma dor física, mas de uma dor que dilacera o coração. O homem caído sente a dor física, enquanto que o samaritano sente a dor no coração.

O samaritano não aceita que o homem esteja caído. Sente uma profunda repulsa contemplando aquela cena. O homem caído contradiz toda a lógica, por que ele foi feito para estar em pé. Ser próximo é ter a coragem de levantar o outro. 

Ao contemplar a realidade é despertado no samaritano um movimento, um sentimento, uma força chamada compaixão, força tão poderosa que todo o corpo se “inclina” diante da realidade do homem caído. 

No evangelho há palavras memoráveis e uma destas é “inclinar”. Gosto muito do relato de Lucas sobre a cura da sogra de Pedro (Lc 4,39). Ele diz que Jesus se “inclinou para ela”. Ninguém se inclina para o outro se não estiver movido de compaixão. E qual é a essência do cristianismo? Vivemos hoje no frenesi das belas liturgias, das franjas, dos belos paramentos. A essência do cristianismo está na atitude do inclinar-se para Deus e para o outro. Deus se inclinou e o que isso tem a dizer para as nossas vidas, para a Igreja? É preciso coragem para responder. Como já afirmei ser próximo é ter a coragem de levantar o outro, para que isso aconteça é necessário que eu me incline. 

Aqui está o paradoxo, o homem é grande quando se inclina, isto é, quando se humilha. Inclina-se para elevar o outro. Mas o outro não se ergue sozinho, os dois se erguem juntos. 

Por isso, que ao levantar-se à pessoa que se fez próximo não é mais a mesma, a que estava caída também não o é. Os dois foram transformados. A união da miséria com a misericórdia, do humano com o divino gera a transformação. O tudo penetrando no fragmento, como diz o nosso povo “a roda grande passando por dentro da roda pequena”, a graça divinizando a natureza. É por isso que no evangelho Jesus diz “quando o Filho do homem for levantado atrairá todos a ele”. 

E o elemento que humaniza os dois não é a paixão, a dor, como se esta tivesse por si mesma a força de transformar, mas a paixão compartilhada. A dor vivenciada, não no sentido de um ficar olhando para o outro, mas no sentido de um colocar-se em movimento para o outro a fim de elevá-lo daquela situação. Ao assumir a dor do outro ela se torna mais leve e os dois conseguem caminhar. Tudo se transforma. É criado um “novo homem, um novo céu e uma nova terra”. 

Ao aproximar-se o samaritano d’aquele homem descobre que ele está ferido, chagado. O descer, o cair nas mãos dos assaltantes, fere o homem, por que os assaltantes desumanizam. Não nascemos para descer, a nossa pátria a Jerusalém está no alto, é celeste, ninguém consegue descer sem ser ferido, sem ser marcado pela dor. Orígenes vai dizer que este homem ferido é Adão que desce do paraíso para o campo, chagas feitas pelo pecado, chagas corporais, mas também na alma. Este homem é o povo de Israel que desce para o Egito, a casa da escravidão, a casa do opróbrio.

Porém, não é apenas o homem ferido que desce. Para ajudar o que está caído o samaritano tem que descer, não se ajuda a nenhum ser humano estando no alto, é preciso descer, colocar-se lado a lado, ser companheiro, ser solidário. Participar da desgraça alheia, torná-la sua. Esta é a lógica de Deus. No livro do Êxodo 3, 7 Deus diz para Moisés: “Eu vi, eu vi a miséria do meu povo que está no Egito... Por isso desci a fim de libertá-lo”. 
Aqui está o sentido da encarnação, o Filho de Deus desce, não por que tenha pecado, mas em solidariedade aos pecadores, desce para erguer o homem decaído. No início da parábola vimos que “um homem desceu...”. Contemplando a cruz podemos dizer que Deus desceu. E quando Deus desce suja as suas mãos, fica também irreconhecível. O salmo 22 lido na perspectiva cristológica afirma: “Quanto a mim, sou um verme e não um homem”. E Isaías 53 diz: “não tinha beleza nem esplendor que pudesse atrair nosso olhar, nem formosura capaz de nos deleitar”. 

O homem desceu por causa da sua miséria, Deus desceu pela compaixão para com o homem. A miséria do homem como que “força” Deus a descer e se deixar pregar na cruz. O samaritano, que agora podemos identificar muito bem com Jesus, segundo Orígenes, oferece ao homem caído “o seu animal”, isto é, a sua humanidade, citando mais uma vez Orígenes, por que é na humanidade de Jesus que a divindade carrega a desgraça humana e a vence na cruz. Através do sofrimento e da sua morte Jesus se identificou com o homem caído e fez seu os sofrimentos deste. 

Sabemos que Jesus é possui a natureza divina e a natureza humana, ele é “o rosto humano de Deus e o rosto divino do homem”. Orígenes afirma que o animal simboliza a humanidade e que é esta que carrega o homem. Isso significa dizer que Deus não quis ser solidário ao homem em sua glória, distante do humano. Mas Deus para nos salvar escolhe o caminho da humanização, a mesma humanidade que está caída Ele a toma para si, veste-se dela, com todas as suas fragilidades, fraquezas, com exceção do pecado, e vestido de humanidade salva o homem. Não é uma humanidade aparente como pensava a seita docetista. É a humanidade em toda a sua crueza. Não é a humanidade de Adão e sim a do homem pecador. 

A compaixão é uma atitude que desperta ação. Antes o samaritano chegou perto, este chegar perto ainda não é uma atitude movida pela compaixão, pode ser apenas uma curiosidade. Somente quem está movido de compaixão pode aproximar-se, fazer-se próximo do outro. Segundo Lucas chegar perto é uma coisa, aproximar-se é outra. É fazer-se próximo, é cuidar do outro. Lembremos de que quem ama cuida. 

Se Orígenes identifica o samaritano misericordioso com Jesus, nós podemos identificar a compaixão com o Espírito Santo. Nos evangelhos percebemos que é o Espírito quem conduz Jesus, é a compaixão quem conduz o Filho de Deus ao encontro dos homens. “O Espírito Santo personifica o amor naquilo que tem de mais desinteressado, demais generoso e de mais entregado, como aquele das mães” (CONGAR)

O samaritano derrama óleo e vinho sobre as feridas. Aqui há uma contradição. Santo Agostinho diz que onde há uma contradição na Sagrada Escritura há uma revelação. Primeiro se derramava vinho para desinfetar a ferida e depois aliviava com o óleo. Mais aqui primeiro vem o óleo e depois o vinho, Orígenes dirá que este óleo e este vinho simbolizam o batismo e a eucaristia. O batismo que nos torna filhos de Deus e a eucaristia que nos alimenta do próprio Deus. Santo Ambrósio dirá que os sacramentos encontram a sua eficácia no mistério da cruz. Os sacramentos são frutos da cruz. E a cruz é a maior doação de Deus na história. 

Orígenes na sua leitura alegórica diz que a hospedaria é a Igreja. A Igreja é o lugar onde o homem caído recupera a sua dignidade. A Igreja é a casa que acolhe os caídos, é o lugar da compaixão. O hospedeiro tem o dever de cuidar do homem caído: “Cuida dele...” dirá o samaritano, “cuidai deles” dirá Jesus para os homens da Igreja. 

E para cuidar deles é preciso procurá-los. Lembremos-nos da vocação de José do Egito (Gn 17 36): “Procuro meus irmãos”. Aqui podemos meditar sobre a missão da Igreja. De início podemos dizer que não se compreende a eclesiologia sem a cristologia e a cristologia precisa da pneumatologia. Isto é, não se compreende a Igreja sem Jesus e não se compreende Jesus sem o Espírito Santo. O Espírito, segundo Paulo, “é o amor de Deus derramado em nossos corações”. No centro de toda a história da salvação esta o amor, a compaixão de Deus. 

Mas se Paulo diz que o Espírito é o amor de Deus, João dirá que o Espírito é o Espírito da Verdade. O Espírito nos leva a toda a verdade. Conhecer a Verdade é fácil, pregar a Verdade é fácil, viver na Verdade, eis a questão. O problema da Igreja não está em conhecer a Verdade, nem em pregar a Verdade, mas sim em viver na Verdade. Os carreirismos, os oportunismos sufocam a Verdade.

E a verdade é que na raiz de toda cristologia está à escandalosa opção de Jesus pelos pobres. Bento XVI dirá: “A opção preferencial pelos pobres está implícita na fé cristológica, naquele Deus que se fez pobre por nós, para enriquecer-nos com a sua pobreza”. O rosto sofredor dos pobres é o rosto sofredor de Cristo. 

Neste sentido a Igreja é fiel a si mesma na medida em que é fiel a Jesus e é fiel a Jesus na medida em que é solidaria com os pobres. E jamais ela será solidária com os pobres enquanto estiver preocupada em manter seu “status quo”. A Verdade é que nos precisamos de conversão. Conversão Pastoral é a grande proposta de hoje. 

A conversão pastoral passa pela mudança nas estruturas da igreja, pela mudança nas relações bispos e padres, pela mudança nas relações clero e leigos. A conversão pastoral é tão desafiadora que ficamos naquela de pedir que o outro se converta. Será que não está na hora de se ouvir o clero na escolha dos bispos para as dioceses, será que não está na hora de se consultar os leigos ou os Conselhos de Pastoral das paróquias para a escolha do padre que vai estar a frente daquela comunidade. Ou ainda estamos na ilusão de que impomos e eles depois se acostumam? Quando na realidade muitos não se acostumam e procuram outros grupos cristãos.

Diante do afastamento dos leigos das nossas comunidades fazemos missões para reconquista-los. Pergunto: para colocá-los aonde? Na mesma estrutura que os rejeitou? É preciso reorganizar primeiro a “hospedaria” para que ela seja acolhedora e depois poderemos ir ao encontro dos afastados. 

A espiritualidade do cristão deve ser a da compaixão. Falamos tanto de espiritualidade e tem quem afirme que a espiritualidade do padre é a liturgia, como se esta fosse privilégio apenas do padre e não de todo o povo de Deus. A espiritualidade de todo o Povo de Deus é a compaixão e para o padre é a “caridade pastoral” que se fundamenta na liturgia que não é o lugar do triunfalismo. O triunfo que tanto desejamos e às vezes queremos antecipar na Igreja só vai acontecer quando o samaritano regressar e encontrar o homem, a humanidade em seu perfeito estado. 

No final Jesus faz a pergunta sobre quem foi o próximo daquele homem. O escriba é forçado a dizer que “foi o que usou de misericórdia para com ele”. E Jesus manda que ele faça o mesmo. Segundo Santo Ambrósio a palavra samaritano significa “guardião”. Lembramos aqui da história de Caim e Abel. Deus perguntou para Caim: “Onde está o teu irmão?” Caim respondeu “Não sei. Por acaso sou guarda do meu irmão?”. Nesta parábola Jesus deu a resposta para Caim: “Sim, você é o guarda do seu irmão”. Mas ela vale para todos nós que nos dizemos seus seguidores. Sendo assim não passemos ao largo, mas vamos ao encontro dos que estão caídos. 
Pe. Paulo Sergio A. Gouveia

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