A parábola do samaritano misericordioso começa da seguinte maneira: “Um
homem descia de Jerusalém a Jerico e caiu no meio dos assaltantes que,
após havê-lo despojado e espancado, foram-se, deixando-o semimorto”.
Logo depois o texto continua “Certo samaritano em viagem, porém, chegou
junto dele”.
Nesta parábola há dois personagens principais: um homem
e certo samaritano. Temos um homem caído, ferido e um samaritano que se
comove com aquela situação. Sabemos que há outros personagens na
história: um levita e um sacerdote, mas, com estes não há proximidade.
Eles passam ao largo. Além destes há outras pessoas envolvidas, são os
assaltantes, estes se aproximaram para despojar e espancar. Para Santo
Ambrósio estes assaltantes são “os anjos das trevas e da noite quês e
transformam as vezes em anjos de luz”. Paulo afirma que não devemos
compactuar com as obras das trevas. Santo Ambrósio continua: “estes
anjos nos despojam da veste nupcial que recebemos”. Quem rouba a
dignidade do outro, quem vence derrubando o outro não passa de um
ladrão, de um anjo das trevas, mesmo que esteja “transfigurado em anjo
de luz” (2Cor 11, 14).
Com um homem caído e um samaritano, Lucas
pinta um quadro onde a moldura é a miséria do homem caído e o centro é a
compaixão do samaritano. Lucas pinta o quadro da caridade. Mas não
bastam os dois personagens para acontecer à caridade, o samaritano
poderia ter sido indiferente ao homem caído.
Há algo que faz com
que a caridade aconteça, o encontro possibilita, mas não significa que a
caridade acontece. O levita e o sacerdote tiveram a oportunidade de
viver a compaixão, também estiveram na mesma linha de cruzamento e viram
o homem caído, mas passaram ao longe, estavam apressados demais. Na
realidade viram, mas não viram. O olhar que é a apreensão da realidade
pelos sentidos é fundamental para o homem, mas não é decisivo no momento
de agir em favor do outro. Não basta olhar, ver, para que as pessoas se
encontrem, é preciso ver com o coração, um olhar purificado, um olhar
interiorizado.
O levita, o sacerdote e o samaritano viram aquele
homem, mas somente o samaritano “chegou junto dele”. Ele não ficou “de
longe”, ele chegou junto do que estava caído. Os outros apenas viram já o
samaritano “moveu-se de compaixão”. A compaixão faz o samaritano ser
próximo do outro. O caído estava vivendo uma paixão, uma dor. O
samaritano sente com-paixão, isto é ele compartilha da dor do outro, ele
a faz sua, não no sentido de uma dor física, mas de uma dor que
dilacera o coração. O homem caído sente a dor física, enquanto que o
samaritano sente a dor no coração.
O samaritano não aceita que o
homem esteja caído. Sente uma profunda repulsa contemplando aquela cena.
O homem caído contradiz toda a lógica, por que ele foi feito para estar
em pé. Ser próximo é ter a coragem de levantar o outro.
Ao
contemplar a realidade é despertado no samaritano um movimento, um
sentimento, uma força chamada compaixão, força tão poderosa que todo o
corpo se “inclina” diante da realidade do homem caído.
No
evangelho há palavras memoráveis e uma destas é “inclinar”. Gosto muito
do relato de Lucas sobre a cura da sogra de Pedro (Lc 4,39). Ele diz que
Jesus se “inclinou para ela”. Ninguém se inclina para o outro se não
estiver movido de compaixão. E qual é a essência do cristianismo?
Vivemos hoje no frenesi das belas liturgias, das franjas, dos belos
paramentos. A essência do cristianismo está na atitude do inclinar-se
para Deus e para o outro. Deus se inclinou e o que isso tem a dizer para
as nossas vidas, para a Igreja? É preciso coragem para responder. Como
já afirmei ser próximo é ter a coragem de levantar o outro, para que
isso aconteça é necessário que eu me incline.
Aqui está o paradoxo,
o homem é grande quando se inclina, isto é, quando se humilha.
Inclina-se para elevar o outro. Mas o outro não se ergue sozinho, os
dois se erguem juntos.
Por isso, que ao levantar-se à pessoa que se
fez próximo não é mais a mesma, a que estava caída também não o é. Os
dois foram transformados. A união da miséria com a misericórdia, do
humano com o divino gera a transformação. O tudo penetrando no
fragmento, como diz o nosso povo “a roda grande passando por dentro da
roda pequena”, a graça divinizando a natureza. É por isso que no
evangelho Jesus diz “quando o Filho do homem for levantado atrairá todos
a ele”.
E o elemento que humaniza os dois não é a paixão, a dor,
como se esta tivesse por si mesma a força de transformar, mas a paixão
compartilhada. A dor vivenciada, não no sentido de um ficar olhando para
o outro, mas no sentido de um colocar-se em movimento para o outro a
fim de elevá-lo daquela situação. Ao assumir a dor do outro ela se torna
mais leve e os dois conseguem caminhar. Tudo se transforma. É criado um
“novo homem, um novo céu e uma nova terra”.
Ao aproximar-se o
samaritano d’aquele homem descobre que ele está ferido, chagado. O
descer, o cair nas mãos dos assaltantes, fere o homem, por que os
assaltantes desumanizam. Não nascemos para descer, a nossa pátria a
Jerusalém está no alto, é celeste, ninguém consegue descer sem ser
ferido, sem ser marcado pela dor. Orígenes vai dizer que este homem
ferido é Adão que desce do paraíso para o campo, chagas feitas pelo
pecado, chagas corporais, mas também na alma. Este homem é o povo de
Israel que desce para o Egito, a casa da escravidão, a casa do opróbrio.
Porém, não é apenas o homem ferido que desce. Para ajudar o que está
caído o samaritano tem que descer, não se ajuda a nenhum ser humano
estando no alto, é preciso descer, colocar-se lado a lado, ser
companheiro, ser solidário. Participar da desgraça alheia, torná-la sua.
Esta é a lógica de Deus. No livro do Êxodo 3, 7 Deus diz para Moisés:
“Eu vi, eu vi a miséria do meu povo que está no Egito... Por isso desci a
fim de libertá-lo”.
Aqui está o sentido da encarnação, o Filho
de Deus desce, não por que tenha pecado, mas em solidariedade aos
pecadores, desce para erguer o homem decaído. No início da parábola
vimos que “um homem desceu...”. Contemplando a cruz podemos dizer que
Deus desceu. E quando Deus desce suja as suas mãos, fica também
irreconhecível. O salmo 22 lido na perspectiva cristológica afirma:
“Quanto a mim, sou um verme e não um homem”. E Isaías 53 diz: “não tinha
beleza nem esplendor que pudesse atrair nosso olhar, nem formosura
capaz de nos deleitar”.
O homem desceu por causa da sua miséria,
Deus desceu pela compaixão para com o homem. A miséria do homem como que
“força” Deus a descer e se deixar pregar na cruz. O samaritano, que
agora podemos identificar muito bem com Jesus, segundo Orígenes, oferece
ao homem caído “o seu animal”, isto é, a sua humanidade, citando mais
uma vez Orígenes, por que é na humanidade de Jesus que a divindade
carrega a desgraça humana e a vence na cruz. Através do sofrimento e da
sua morte Jesus se identificou com o homem caído e fez seu os
sofrimentos deste.
Sabemos que Jesus é possui a natureza divina e a
natureza humana, ele é “o rosto humano de Deus e o rosto divino do
homem”. Orígenes afirma que o animal simboliza a humanidade e que é esta
que carrega o homem. Isso significa dizer que Deus não quis ser
solidário ao homem em sua glória, distante do humano. Mas Deus para nos
salvar escolhe o caminho da humanização, a mesma humanidade que está
caída Ele a toma para si, veste-se dela, com todas as suas fragilidades,
fraquezas, com exceção do pecado, e vestido de humanidade salva o
homem. Não é uma humanidade aparente como pensava a seita docetista. É a
humanidade em toda a sua crueza. Não é a humanidade de Adão e sim a do
homem pecador.
A compaixão é uma atitude que desperta ação. Antes o
samaritano chegou perto, este chegar perto ainda não é uma atitude
movida pela compaixão, pode ser apenas uma curiosidade. Somente quem
está movido de compaixão pode aproximar-se, fazer-se próximo do outro.
Segundo Lucas chegar perto é uma coisa, aproximar-se é outra. É fazer-se
próximo, é cuidar do outro. Lembremos de que quem ama cuida.
Se
Orígenes identifica o samaritano misericordioso com Jesus, nós podemos
identificar a compaixão com o Espírito Santo. Nos evangelhos percebemos
que é o Espírito quem conduz Jesus, é a compaixão quem conduz o Filho de
Deus ao encontro dos homens. “O Espírito Santo personifica o amor
naquilo que tem de mais desinteressado, demais generoso e de mais
entregado, como aquele das mães” (CONGAR)
O samaritano derrama óleo e
vinho sobre as feridas. Aqui há uma contradição. Santo Agostinho diz
que onde há uma contradição na Sagrada Escritura há uma revelação.
Primeiro se derramava vinho para desinfetar a ferida e depois aliviava
com o óleo. Mais aqui primeiro vem o óleo e depois o vinho, Orígenes
dirá que este óleo e este vinho simbolizam o batismo e a eucaristia. O
batismo que nos torna filhos de Deus e a eucaristia que nos alimenta do
próprio Deus. Santo Ambrósio dirá que os sacramentos encontram a sua
eficácia no mistério da cruz. Os sacramentos são frutos da cruz. E a
cruz é a maior doação de Deus na história.
Orígenes na sua leitura
alegórica diz que a hospedaria é a Igreja. A Igreja é o lugar onde o
homem caído recupera a sua dignidade. A Igreja é a casa que acolhe os
caídos, é o lugar da compaixão. O hospedeiro tem o dever de cuidar do
homem caído: “Cuida dele...” dirá o samaritano, “cuidai deles” dirá
Jesus para os homens da Igreja.
E para cuidar deles é preciso
procurá-los. Lembremos-nos da vocação de José do Egito (Gn 17 36):
“Procuro meus irmãos”. Aqui podemos meditar sobre a missão da Igreja. De
início podemos dizer que não se compreende a eclesiologia sem a
cristologia e a cristologia precisa da pneumatologia. Isto é, não se
compreende a Igreja sem Jesus e não se compreende Jesus sem o Espírito
Santo. O Espírito, segundo Paulo, “é o amor de Deus derramado em nossos
corações”. No centro de toda a história da salvação esta o amor, a
compaixão de Deus.
Mas se Paulo diz que o Espírito é o amor de
Deus, João dirá que o Espírito é o Espírito da Verdade. O Espírito nos
leva a toda a verdade. Conhecer a Verdade é fácil, pregar a Verdade é
fácil, viver na Verdade, eis a questão. O problema da Igreja não está em
conhecer a Verdade, nem em pregar a Verdade, mas sim em viver na
Verdade. Os carreirismos, os oportunismos sufocam a Verdade.
E a
verdade é que na raiz de toda cristologia está à escandalosa opção de
Jesus pelos pobres. Bento XVI dirá: “A opção preferencial pelos pobres
está implícita na fé cristológica, naquele Deus que se fez pobre por
nós, para enriquecer-nos com a sua pobreza”. O rosto sofredor dos pobres
é o rosto sofredor de Cristo.
Neste sentido a Igreja é fiel a si
mesma na medida em que é fiel a Jesus e é fiel a Jesus na medida em que é
solidaria com os pobres. E jamais ela será solidária com os pobres
enquanto estiver preocupada em manter seu “status quo”. A Verdade é que
nos precisamos de conversão. Conversão Pastoral é a grande proposta de
hoje.
A conversão pastoral passa pela mudança nas estruturas da
igreja, pela mudança nas relações bispos e padres, pela mudança nas
relações clero e leigos. A conversão pastoral é tão desafiadora que
ficamos naquela de pedir que o outro se converta. Será que não está na
hora de se ouvir o clero na escolha dos bispos para as dioceses, será
que não está na hora de se consultar os leigos ou os Conselhos de
Pastoral das paróquias para a escolha do padre que vai estar a frente
daquela comunidade. Ou ainda estamos na ilusão de que impomos e eles
depois se acostumam? Quando na realidade muitos não se acostumam e
procuram outros grupos cristãos.
Diante do afastamento dos leigos
das nossas comunidades fazemos missões para reconquista-los. Pergunto:
para colocá-los aonde? Na mesma estrutura que os rejeitou? É preciso
reorganizar primeiro a “hospedaria” para que ela seja acolhedora e
depois poderemos ir ao encontro dos afastados.
A espiritualidade do
cristão deve ser a da compaixão. Falamos tanto de espiritualidade e tem
quem afirme que a espiritualidade do padre é a liturgia, como se esta
fosse privilégio apenas do padre e não de todo o povo de Deus. A
espiritualidade de todo o Povo de Deus é a compaixão e para o padre é a
“caridade pastoral” que se fundamenta na liturgia que não é o lugar do
triunfalismo. O triunfo que tanto desejamos e às vezes queremos
antecipar na Igreja só vai acontecer quando o samaritano regressar e
encontrar o homem, a humanidade em seu perfeito estado.
No final
Jesus faz a pergunta sobre quem foi o próximo daquele homem. O escriba é
forçado a dizer que “foi o que usou de misericórdia para com ele”. E
Jesus manda que ele faça o mesmo. Segundo Santo Ambrósio a palavra
samaritano significa “guardião”. Lembramos aqui da história de Caim e
Abel. Deus perguntou para Caim: “Onde está o teu irmão?” Caim respondeu
“Não sei. Por acaso sou guarda do meu irmão?”. Nesta parábola Jesus deu a
resposta para Caim: “Sim, você é o guarda do seu irmão”. Mas ela vale
para todos nós que nos dizemos seus seguidores. Sendo assim não passemos
ao largo, mas vamos ao encontro dos que estão caídos.
Pe. Paulo Sergio A. Gouveia
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