sexta-feira, 28 de agosto de 2015

Tomar a cruz significa ter gosto pelo sofrimento?

“Se alguém quer vir após mim, negue-se a si mesmo e tome, a cada dia, a sua cruz e siga-me.”  (Lucas 9, 23)
“Feliz quem teme o Senhor e segue seus caminhos. Viverás do trabalho de tuas mãos, viverás feliz e satisfeito” (Sl 127,1). Deus nos criou como participantes da vida, da natureza, do mundo, e responsáveis por eles. Olhar em torno de nós é nos encontrarmos em casa e nos dispormos a edificar com serenidade o lar comum, com as peças da fraternidade e da solidariedade.
Segundo o plano do Senhor, temos condições para realizar tal tarefa, ainda que, com inquietante frequência, nossas ações pareçam justamente destruir a obra de Deus e de tantas gerações. É que convivemos com o doloroso mistério do pecado, cuja presença já as primeiras páginas da Bíblia constataram. Desde o princípio, parece que apraz à humanidade fazer o jogo da violência, como crianças e adolescentes em brincadeiras eletrônicas, tantas delas montadas em plataformas de destruição recíproca. Incrível é ver quantos marmanjos de idade ou estatura avançada se dedicam a tais “retratos da vida”!
Ao formar Seus discípulos, Jesus lhes propõe um jogo diferente (Cf. Mt 16, 21-27), cujas peças têm nomes que se tornam caminhos de realização e salvação (Cf. Mt 16, 24-25). A primeira delas é “Se alguém quer”. Para dar o segundo passo, é preciso “seguir”. A terceira peça é “renuncie a si mesmo”, e a quarta: “tome a sua cruz”. Regra do jogo: “quem perder a sua vida por causa de mim vai encontrá-la”.
Deus nos ofereceu o precioso dom da liberdade, dando-nos a possibilidade de nos comprometermos com o Seu plano. Os objetivos escolhidos na vida estabelecem os rumos a serem percorridos. Quem começa mal, escolhendo metas limitadas, já compromete a corrida da existência. Não fomos feitos apenas para ter casa própria, bom emprego, carro novo, muito dinheiro no banco. Deixemos que o Senhor nos pergunte sobre o que queremos efetivamente! Ideal digno dos homens e mulheres que Deus criou e que somos nós, é justamente aquele que foi descrito nas primeiras páginas da Sagrada Escritura (cf. Gn 1-2):
Deus, reconhecido como Criador e Pai de todos, homens e mulheres feitos à Sua imagem, com inteligência e liberdade, a fraternidade e o senhorio em relação à criação. Poucas palavras que refletem o plano de Deus. Para entrar no jogo da vida, saber decidir!
Renunciar a si mesmo! Trata-se de mudar o eixo da existência quando os impulsos da natureza pedem acúmulo de bens e afetos. A maturidade humana efetiva só pode acontecer quando um homem ou uma mulher alcançam essa altitude. Muitas pessoas só conseguirão dar esse passo nos instantes derradeiros da existência nesta terra, quando tiverem que se desapegar de tudo, pois deverão apresentar-se diante do Criador. É melhor antecipá-lo! É mais saudável viver não para si, mas para Deus e o próximo, e não são poucos os exemplos de gente que soube fazer essa mudança.
A decisão do cristão comporta o seguimento. A palavra “discípulo” indica a escolha feita, quando se escolhe ir atrás de alguém, com coração e ouvido aberto, pronto a pisar no mesmo rastro daquele que foi reconhecido como Mestre. E como não faltam mestres entre as muitas companhias que nos são oferecidas pelo caminho, a proposta é escolher Jesus: “Deu-me o Senhor Deus uma língua habilidosa para que aos desanimados eu saiba ajudar com uma palavra. Toda manhã ele desperta meus ouvidos para que, como bom discípulo, eu preste atenção. O Senhor Deus abriu-me os ouvidos, e eu não fiquei revoltado, para trás não andei” (Is 50, 4-5).
Os discípulos chamados pelo Senhor Jesus tiveram surpresas. Uma delas, que assustou de forma especial aquele que tinha sido declarado “Pedra” (Cf. Mt 16, 21-23), foi a cruz. Carregá-la com disposição é regra de jogo na vida cristã. Não se engane quem quer empreender essa estrada, mas decida-se a abraçá-la. Tomar a cruz não significa cultivar um gosto doentio pelo sofrimento ou os muitos incômodos da vida, pois a dor sozinha não gera frutos. Cruz significa transformar, como escolha livre, todos os atos da existência em amor a Deus e ao próximo, saindo de si mesmo para fazer o bem.Quer dizer encontrar o caminho diário da salvação, olhando para o alto, no amor a Deus, e abrir os braços no amor ao próximo. Na confluência dos dois amores se eleva a cruz e esta vem a ser abraçada e não arrastada.
A regra de vida a ser acolhida pelo cristão e proposta a todas as pessoas que desejam a felicidade autêntica é assim descrita por Jesus, num encontro que desencadeou nova etapa na vida de Seus discípulos. É que a novidade era tão grande que o Senhor precisou acompanhá-los bem de perto, aproveitando as lições do caminho a ser percorrido, para aprenderem o jeito novo de viver (cf. Mc 8, 1-10,52).
“Tu me seduziste, Senhor, e eu me deixei seduzir! Foste mais forte do que eu e me subjugaste! Tornei-me a zombaria de todo dia, todos se riem de mim. Sempre que abro a boca é para protestar! Vivo reclamando da violência e da opressão! A palavra de Deus tornou-se para mim vergonha e gozação todo dia. Pensei: ‘Nunca mais hei de lembrá-lo, não falo mais em seu nome!’ Mas parecia haver um fogo a queimar-me por dentro, fechado nos meus ossos. Tentei aguentar, não fui capaz” (Jr 20,7-9).
Quando tantos podem pensar que as regras propostas por Deus não atraiam, eis que muita gente se dispõe a seguir o Senhor, aceitando passos do jogo da vida que parecem absurdas. No entanto, são elas o caminho da felicidade verdadeira. O contato com Deus, visto inclusive pelos profetas como verdadeira sedução, atrai as pessoas. Que mais pessoas aceitem esse jogo, no qual a vitória é certa, pois as partes envolvidas são o Céu e a Terra. Deus ama a humanidade e a faz parceira na construção de um mundo diferente! “Quem quiser salvar sua vida a perderá; e quem perder sua vida por causa de mim a encontrará. De fato, que adianta a alguém ganhar o mundo inteiro, se perde a própria vida?” (Mt 16, 25-26).
Texto: Dom Alberto Taveira Corrêa
Fonte: Canção Nova

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